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Modulação autônoma, voz e estado de humor

Mariana Lopez

18 de Setembro de 2019

A fala traz informações sobre o estado emocional, bem como informações de conteúdo semântico sobre as intenções do falante. Isso porque o processo de vocalização é afetado pela excitação emocional, sendo influenciado pelo sistema límbico e pela modulação do sistema nervoso somático e do sistema nervoso autônomo (sistema nervoso simpático e parassimpático). Pesquisadores da Universidade de Kyung Hee Seoul, da Coreia do Sul, realizaram uma pesquisa para investigar características emocionais e um dos marcadores indiretos do sistema nervoso autônomo (variabilidade da frequência de pulso) associados à voz. 
 

O sistema nervoso autônomo é responsável pelo controle das funções viscerais do corpo, na regulação das respostas adaptativas ao ambiente. A modulação autônoma nos seres humanos é resultado de um processo de evolução filogenético que se adaptou a fim de manter a homeostase do organismo e o comportamento social. A regulação visceral, as expressões faciais e a vocalização são importantes substratos comportamentais, influenciadas pelo sistema nervoso autônomo, especialmente pelo nervo vago (parassimpático). O nervo vago se caracteriza como um importante inibidor e desinibidor cardíaco e simpático, para manter a “calma” e o “equilíbrio” fisiológico para que seja possível a adaptação ao ambiente conforme contexto social.

 

É possível mensurar a modulação autônoma de forma indireta e não invasiva por meio de eletrodos cardíacos do eletrocardiograma (ECG) ou por uma cinta cardíaca que capta a variabilidade da frequência cardíaca. A variabilidade da frequência cardíaca é caracterizada pelo intervalo de tempo em milissegundos dos batimentos cardíacos. Outra forma de mensurar indiretamente a modulação autônoma é por meio do registro da variabilidade da frequência de pulso (VFP), que possui correlação com a variabilidade da frequência cardíaca (VFC). A VFP pode ser mensurada pela fotopletismografia, que corresponde ao tempo serial obtido da digitalização das medidas da luz refletidas ou absorvidas, que muda com o fluxo sanguíneo periódico. Após a sístole cardíaca, o volume sanguíneo local aumenta de forma aguda, reduzindo a intensidade da luz recebida. Durante a diástole, o volume sanguíneo diminui e a reflexão da luz aumenta. O sinal de ECG é um sinal de tensão elétrica e o sinal de fotopletismografia é medido por reflexão ou absorção de luz (exemplo: medida dos batimentos cardíacos pela reflexão de luz da câmera do celular); os valores máximos de ambos os sinais estão relacionados à sístole cardíaca.
 

Por meio de análises matemáticas são realizadas análises baseadas na VFC ou na VFP, que refletem indiretamente a ação simpática e parassimpática do sistema nervoso autônomo. Algumas análises utilizadas para investigar a modulação autônoma são:

 

HF (High Frequency): variação de 0,15 a 0,4Hz que corresponde à modulação respiratória e é um indicador da atuação do nervo vago sobre o coração; 
 

LF (Low Frequency): variação entre 0,04 e 0,15Hz, decorrente da ação conjunta dos componentes parassimpático e simpático sobre o coração, com predominância do simpático em determinadas situações; 


VLF (Very Low Frequency) e ULF (Ultra Low frequency): Índices menos utilizados cuja explicação fisiológica não está bem estabelecida e parece estar relacionada ao sistema renina-angiotensina-aldosterona, à termorregulação e ao tônus vasomotor periférico; 


LF/HF: Reflete as alterações absolutas e relativas entre os componentes simpático e parassimpático do SNA, caracterizando o balanço simpatovagal sobre o coração (normal de 1,5 a 2,0); a diminuição da relação LF/HF ocorre quando o aumento acentuado do tônus simpático não é capaz de gerar oscilações periódicas, “saturando” o sistema. 


No estudo que será relatado, os pesquisadores investigaram os índices LF, HF e a razão LF/HF (em ms²) através do registro da variabilidade da frequência de pulso, as pontuações para as subescalas do POMS (perfil dos estados de humor) e os parâmetros acústicos em 75 indivíduos em repouso. 

 

A hipótese dos pesquisadores era que a emoção ou o estado de humor estaria relacionado à função autonômica cardiovascular e à qualidade acústica, e a modulação simpática e parassimpática interfeririam no efeito da emoção na vocalização. No entanto, poucas pesquisas examinaram quais parâmetros autonômicos e acústicos são mais indicativos dos estados de humor. 
 

Para o registro dos dados, os participantes permaneceram 15 minutos em repouso e em seguida foi realizado o registro da variabilidade pico-a-pico da taxa de pulso de fotopletismografia com um sensor posicionado na ponta do segundo dedo esquerdo e conectado ao amplificador PPG (BIOPAC Systems Inc., Goleta, CA, EUA). Antes da gravação acústica, os sujeitos relaxaram por 10 minutos lendo uma revista ou jornal e depois sentaram-se em uma sala silenciosa. Os sujeitos sustentaram a vogal /a/ em um tom confortável por pelo menos 3 seg. A escala POMS foi respondida individualmente. Esta escala possui seis subescalas: tensão, depressão, raiva, fadiga e confusão (afeto negativo); vigor (afeto positivo). Foram somadas as seis subescalas do POMS e transformado o escore escore z para cada subescala. No valor de z de cada subescala foi definido o grupo abaixo de zero como o grupo de baixa pontuação e o grupo acima de zero como o grupo de alta pontuação. Estas variáveis dicotômicas para cada subescala foram então usadas para examinar se cada parâmetro acústico mostrava uma diferença entre os grupos.
 

Os valores dos parâmetros acústicos (shimmer - variações ciclo-a-ciclo em amplitude; e o SD F0 - desvio padrão da frequência fundamental) foram usados para examinar se havia diferenças significativas nos estados de humor e na função autonômica cardiovascular, entre os grupos baixo e alto na qualidade vocal acústica. Também foram analisados os parâmetros acústicos e PRV separadamente por sexo.

 

Dentre os resultados, os valores da VFP mostraram que LF/HF é indicativo de fadiga em homens e mulheres, enquanto LF e HF são indicativos de depressão e raiva apenas em mulheres. Quanto aos parâmetros acústicos, nos homens, o shimmer foi significativamente menor na alta tensão do que no grupo de baixa tensão, e o SD F0 foi significativamente maior na depressão alta do que no grupo de depressão baixa e no grupo de depressão. Nos homens o tremor foi significativamente menor na alta raiva do que no grupo de baixa raiva. Nas mulheres, apenas SD F 0 foi significativamente menor na alta tensão do que no grupo de baixa tensão. Isso significa que parâmetros relacionados a perturbações, como shimmer e SD F0,, foram indicativos de estados de humor em homens e mulheres. 

 

Os autores sugeriram que que os parâmetros autonômicos, acústicos e os estados de humor podem se relacionar e interferir entre si. De acordo com a teoria do modelo de interação neurovisceral, os circuitos de ameaça subcorticais simpatoexcitatórios estão sob controle inibitório tônico pelo córtex pré-frontal. É plausível que uma mudança imediata de humor induza aumentos na atividade simpática e diminua a atividade parassimpática, enquanto a atividade simpática de longa duração, devido à preservação do humor em longo prazo, pode exaurir energia conservada e resultar em reduções nas atividades simpática e parassimpática.
 

LF, HF e TP diminuídos relacionados à depressão e raiva em mulheres podem resultar de atividade simpática e parassimpática diminuída devido à preservação a longo prazo da depressão e da raiva. Na análise das diferenças nas subescalas do POMS entre os grupos alto e baixo para os parâmetros acústicos, shimmer e SD F0 foram indicativos de tensão e depressão nos homens, e SD F0 foi indicativo de tensão nas mulheres.  Verificou-se que shimmer está relacionado com a rugosidade da qualidade de voz de alguém e SD F0 está relacionado com a instabilidade fonatória.

 

Portanto, parece que a aspereza da voz e a instabilidade fonatória são indicativas de humor em homens e mulheres. Os resultados deste estudo sugerem que os parâmetros autonômicos e acústicos são indicativos dos estados de humor em indivíduos jovens em repouso.  Parâmetros relacionados ao equilíbrio simpático-vagal, como LF/HF, foram indicadores dominantes de fadiga em homens e mulheres, enquanto LF e HF foram indicativos de depressão e raiva em mulheres. 
 

Em termos de parâmetros acústicos, shimmer e SD F0,, que foram relacionados à rugosidade e instabilidade na qualidade vocal, foram indicativos de tensão e depressão em homens e mulheres. Investigações adicionais são necessárias para examinar outros fatores (por exemplo, características hormonais e comportamentais) pelos quais a emoção ou o humor afetam o processo de vocalização em amostras maiores.

Para refletir...

Implicações

Pesquisas que relacionam a voz com características fisiológicas podem favorecer o desenvolvimento de hardwares e softwares capazes de detectar características que podem prever estados emocionais. Estas pesquisas podem se tornar base para predizer condições psicológicas por meio da voz e da modulação autonômica.   

Limitações da pesquisa

Algumas limitações devem ser consideradas:


1. Não foi utilizada uma entrevista psiquiátrica estruturada. A entrevista psiquiátrica estruturada é importante especialmente neste tipo de pesquisa que utiliza a análise de índices autonômicos. Pessoas em condições psiquiátricas podem apresentar disfunção autonômica e pode enviesar os resultados dos índices LF, HF, LF/HF Manter a população da pesquisa bem caracterizada propicia a discussão dos dados conforme o público investigado. 

2. A generalização dos resultados é limitada porque a distribuição etária variou apenas de 19 a 24 anos. Isso porque a voz e os índices autonômicos podem variar conforme a idade. Por exemplo, se a pesquisa fosse realizada com o público idoso a manifestação dos resultados e a interpretação poderia ocorrer de outra maneira.   

Materiais Complementares

Um estudo prévio demonstrou que a voz pode ser importante para desenvolver carros inteligentes. O kit que inclui o mecanismo para reconhecer estados emocionais como “confiança” ou “incerteza” com base no discurso do motorista. A resposta do carro ao estado emocional do motorista é exibida por uma nova interface com o usuário implementada no SoC (Sistema-on-chip) Renesas R-Car. Como é possível que o carro entenda as palavras e o estado emocional do motorista, ele pode fornecer a resposta apropriada que garante a segurança ideal do motorista.  Como esta tecnologia está ligada à aprendizagem de máquina baseada em inteligência artificial, é possível que o carro aprenda a partir de conversas com o motorista, permitindo que ele se transforme em um carro capaz de fornecer a melhor resposta ao motorista.

 

Para conferir este material, clique aqui.

 

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Como citar este texto:

 

Lopez, M. (2019). Modulação autônoma, voz e estado de humor (Website Alfabetização Científica em Psicologia). Recuperado de: https://alfabetizacaopsico.wixsite.com/home/materia-3-6

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Referência:

O artigo Autonomic function, voice, and mood states, de Park, C.-K., Lee,  Park, H.-J., Baik, Park, Y.-B. & Park, Y.-J (2011) pode ser lido na revista Clinical Autonomic Research clicando aqui. 

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