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Como assim, videogames de tiro em primeira pessoa?

Lucas Martins do Nascimento

15 de Maio de 2018

A indústria dos videogames busca constantemente incrementar a experiência com os jogos em aspectos de realismo e mecânicas mais complexas de jogo. A categoria de jogos denominada First Person Shooter (FPS), traduzida como Tiro em Primeira Pessoa, possui espaço na literatura científica, pois contém jogos que tipicamente envolvem mindsets (ou configurações da mente) adaptativos, exercitando respostas a estímulos visuais e auditivos rápidos, além da inibição de ações indesejadas, como o alvejar um jogador aliado.

Figura 1. Captura de tela de Counter-Strike Global Offensive, um jogo de FPS da atualidade.

Estudos anteriores já demonstraram que jogadores de videogames (JVGs) de FPS superaram o desempenho de não jogadores (NJVGs) em uma tarefa computadorizada de alternância atencional entre tarefas (chamado task switching), a qual gera escores referentes à flexibilidade cognitiva. Em outras palavras, os JVGs tiveram menos custos na alternância entre tarefas (switching costs, em inglês), apoiando a ideia de que jogos de FPS estão associados ao aumento da flexibilidade cognitiva. No entanto, a habilidade de flexibilidade cognitiva é apenas uma de três funções de controle cognitivo, composto também pela habilidade de inibição de respostas indesejadas, a atualização (updating, em inglês)/monitoramento da memória de trabalho.

Tendo em vista que estudos prévios já associaram jogadores de FPS com maior flexibilidade cognitiva, como o treino em vídeogame se reflete nas outras duas habilidades do controle cognitivo, a inibição de respostas indesejadas, e a atualização/monitoramento da memória de trabalho?

A partir deste questionamento, os pesquisadores Lorenza S. Colzato, Sharon Zmigrod e Bernhard Hommel da Universidade de Leiden e Wery van den Wildenberg da Universidade de Amsterdam realizaram uma pesquisa com o objetivo de verificar se haveria um incremento geral do controle cognitivo em jogadores de FPS.

Esta pesquisa teve duas etapas:

Etapa 1: Os participantes responderam um questionário sobre hábitos com videogames como parte de uma bateria de testes.

 

Etapa 2: Após uma semana, com base nas informações da etapa anterior, os participantes foram convidados para a segunda parte do experimento (sem que o tema do estudo fosse revelado), sendo divididos em grupos de JVGs e NJVGs. Para compor o primeiro grupo, o participante deveria ter um histórico de práticas com jogos de FPS por no mínimo cinco horas semanais, no período de um ano. Os critérios de inclusão para o grupo de NJVGs foram não possuir experiência com videogames de ação, assim como pouca ou nenhuma experiência com outros gêneros de videogames. No total foram recrutados 52 adultos saudáveis, com média de 26 anos de idade, sendo 48 homens e 4 mulheres, e todos receberam a compensação de 6,50 Euros para participar do estudo. 26 participantes foram alocados a cada um dos grupos. Os participantes que não se encaixaram em nenhuma das duas categorias foram excluídos do estudo.

Não tornar explícito o tema de pesquisa (o objetivo principal) pode ser importante em algumas pesquisas para evitar que expectativas, motivações ou até mesmo a ansiedade influencie o desempenho dos participantes.

Nesta segunda etapa os participantes foram testados individualmente na seguinte sequência de atividades:

1. Matrizes Progressivas de Raven – Acessa a habilidade de criar relações perceptivas e raciocinar por analogia. Em outras palavras, o indivíduo tem contato com sequências de imagens e deverá encontrar o pedaço que falta para completar um desenho. É um tipo de avaliação de inteligência fluida que gera o valor do QI. Este teste teve duração de 30 minutos.

 

2. Stop Signal task – Tarefa computadorizada que avalia a habilidade de interromper de modo voluntário repostas motoras planejadas ou em andamento, também conhecida como uma tarefa que avalia controle inibitório. Esta tarefa teve 5 blocos de 104 trials cada. Em cada trial o participante visualizou uma seta verde apontando para direita ou para esquerda (50% chance para ambos lados), e o participante deveria indicar com as setas do teclado qual direção o estímulo na tela indicava. A seta verde mudou para a cor vermelha em 30% dos trials, onde o participante deveria inibir sua resposta (stop trials). Entre os intervalos havia uma cruz de fixação do olhar com 3mm de diâmetro. Neste teste um algoritmo ajustava automaticamente a velocidade em que o participante era avaliado. Se a tarefa estava “fácil” para o participante o teste era acelerado, assim como quando o respondente estava errando as respostas, o teste desacelerava. Estes ajustes são evidenciados no índice stop-signal reaction time (SSRT), o qual reflete o tempo médio necessário para o participante inibir corretamente as respostas indesejadas. O teste teve duração de 30 minutos.

 

3- N-Back task – Teste computadorizado com objetivo de avaliar a memória de trabalho. Nesta tarefa, os estímulos foram compostos por letras (B, C, D, G, P, T, F, N, L). Os estímulos eram apresentados na tela por 1000ms, em uma sequência ininterrupta, com intervalo de 2000ms entre os estímulos. Este teste foi dividido em dois níveis de carga (load, em inglês). Na condição de menor carga, denominada 1-back, o participante devia responder com a tecla shift esquerda quando o estímulo atual fosse equivalente ao estimulo de 1 estímulo anterior (ocorria em 33% dos estímulos) e com a tecla direita quando o estímulo atual não fosse equivalente (ocorria em 66% dos estímulos). Na condição de maior carga, 2-back, o participante deveria verificar se o estímulo atual era equivalente a 2 estímulos anteriores. É importante ressaltar que metade dos participantes responderam com as teclas invertidas. Cada bloco teve 4 ciclos de 32 estímulos da mesma tarefa. O teste teve duração de 15 minutos.

Primeiramente, os resultados das avaliações do Matrizes Progressivas de Raven foram analisados por meio da análise estatística do teste t para amostras independentes, indicando que não havia diferença de idade, tampouco de inteligência entre os grupo de JVGs e NJVGs. Com estas informações podemos inferir que os grupos estavam equiparados em condições de idade e inteligência, o que aumenta a confiabilidade desta pesquisa, sendo um passo importante para “isolar” a principal diferença entre os grupos: ser ou não um JVG.

 

Sobre os dados do Stop-Signal task, realizou-se a análise estatística entre grupos (JVGs e NJVGs), em que constatou-se que o tempo de reação (TR) médio dos Go Trials (quando o sujeito deveria responder aos estímulos sem inibir sua resposta) dos JVGs foi significativamente mais rápido (421 milissegundos) que NJVGs (489 ms), mesmo quando esta análise foi controlada pelas covariáveis idade e QI. Estes dados corroboram grande parte da literatura científica, indicando que a prática regular com videogames está relacionada com incrementos na atenção visual. Ainda sobre o Stop-Signal task, comparou-se o índice SSRT médio entre JVGs (209 ms) e NJVGs (206 ms), sem constar diferença significativa entre os grupos, mesmo considerando as covariáveis idade e QI, sugerindo que o contato com jogos de FPS não produz efeitos na habilidade de controle inibitório.

Com relação à n-back task, as diferenças entre os grupos foram analisadas com análises estatísticas, considerando a carga (maior ou menor carga) como um fator intra-sujeitos e grupo (JVGs e NJVGs) como um fator entre-sujeitos. Sobre a comparação de grupos, os JVGs foram significativamente mais rápidos (467 ms contra 528 ms de NJVGs) e mais precisos, (91.2% contra 85.3% de NJVGs). Os jogadores também obtiveram mais Hits (36.3% contra 33.8% de NJVGs), rejeições corretas (55.8% contra 52.3% de NJVGs), além de menos alarmes falsos (4.3% contra 7.9% de NJVGs) e menos erros (4.7% contra 7.3% de NJVGs). Os pesquisadores verificaram este mesmo padrão de resultados após inserir as covariáveis idade e QI nas análises estatísticas. Estes escores indicam que os JVGs realizam habilidades de atualização e monitoramento da memória de trabalho com maior eficiência em comparação a NJVGs.

Sobre a condição de carga na n-back task, verificou-se que para ambos JVGs e NJVGs houve diferenças significativas em todas as variáveis, em que maior carga aumentou o TR, reduziu a acurácia, e também esteve relacionada com menos Hits, menos rejeições corretas, mais alarmes falsos, e mais erros, em comparação com a condição de menor carga. Com estes dados observou-se que ambos os grupos sofrem prejuízos com maiores cargas cognitivas exigidas no N-Back task, porém conforme informações a seguir, estes efeitos ocorrem de forma diferente para JVGs e NJVGs.

Com relação à n-back task, as diferenças entre os grupos foram analisadas com análises estatísticas, considerando a carga (maior ou menor carga) como um fator intra-sujeitos e grupo (JVGs e NJVGs) como um fator entre-sujeitos. Sobre a comparação de grupos, os JVGs foram significativamente mais rápidos (467 ms contra 528 ms de NJVGs) e mais precisos, (91.2% contra 85.3% de NJVGs). Os jogadores também obtiveram mais Hits (36.3% contra 33.8% de NJVGs), rejeições corretas (55.8% contra 52.3% de NJVGs), além de menos alarmes falsos (4.3% contra 7.9% de NJVGs) e menos erros (4.7% contra 7.3% de NJVGs). Os pesquisadores verificaram este mesmo padrão de resultados após inserir as covariáveis idade e QI nas análises estatísticas. Estes escores indicam que os JVGs realizam habilidades de atualização e monitoramento da memória de trabalho com maior eficiência em comparação a NJVGs.

Sobre a condição de carga na n-back task, verificou-se que para ambos JVGs e NJVGs houve diferenças significativas em todas as variáveis, em que maior carga aumentou o TR, reduziu a acurácia, e também esteve relacionada com menos Hits, menos rejeições corretas, mais alarmes falsos, e mais erros, em comparação com a condição de menor carga. Com estes dados observou-se que ambos os grupos sofrem prejuízos com maiores cargas cognitivas exigidas no n-back task, porém conforme informações a seguir, estes efeitos ocorrem de forma diferente para JVGs e NJVGs.

Em suma, como um diferencial, esta pesquisa investigou se a prática com jogos de FPS está associada com habilidades de monitoramento e atualização da memória de trabalho, assim como a inibição de respostas indesejadas, proporcionando uma avaliação ampla sobre o controle cognitivo. Ao compilar os principais achados da pesquisa, os autores destacaram que os JVGs tiveram respostas mais precisas em ambas condições de carga (na N-Back task), reações mais rápidas no Go Trials (na Stop Signal task), porém eficiência similar de inibir respostas. Como conclusão, os autores propõem que JVGs possuem maior capacidade de remover informações antigas e não mais relevantes da memória de trabalho e, consequentemente, reduzem possíveis competições e liberam recursos atencionais para novas informações.

Para refletir...

Implicações

Seguindo a tendência de estudos prévios, esta pesquisa constatou efeitos positivos para habilidades cognitivas por meio da prática regular com jogos de ação, mais especificamente na modalidade FPS.  No entanto, devemos nos atentar para os efeitos da exposição à violência gráfica (típica dos jogos de FPS), que não foram devidamente explorados neste protocolo.

Na discussão do artigo, os autores traçam um diálogo contestando o posicionamento da mídia sobre associações entre jogos de FPS e comportamentos impulsivos ou agressivos, assim como desempenho inferior em tarefas de controle inibitório. Neste sentido, eles tomam seus achados, assim como dados de pesquisas anteriores para demonstrar como o desempenho inibitório de JVGs e NJVGs são equiparados. Ainda que estes dados sejam positivos (pois demonstram que JVGs não são sujeitos “descontrolados” em suas habilidades inibitórias), devemos ter cautela para não firmarmos conclusões precipitadas, tendo em vista que objetivo central da pesquisa não buscou resolver este problema de pesquisa.

 

Por fim, retomando a aparente equivalência no controle inibitório de ambos os grupos, deixamos um questionamento: Visto que JVGs engajam-se tantas horas nesta atividade, e seu desempenho inibitório permanece equiparado ao grupo de NVGPs, como podemos desenvolver jogos que incrementem a habilidade de inibição?

Limitações da pesquisa

Algumas limitações devem ser consideradas:


1. Os autores reconhecem que a relações constatadas podem não ser diretas, destacando que há fatores neurodesenvolvimentais que atuam sobre as predisposições genéticas, as quais podem favorecer funções de controle executivo. Em outras palavras, estes fatores podem influenciar o modo como as pessoas se beneficiam da prática com videogames.

2. Durante a leitura do artigo em questão, fica evidente a necessidade da descrição da tarefa com esquemas ou fluxogramas para facilitar a compreensão e a replicabilidade da pesquisa.

3. No Stop-Signal task, os estímulos eram compostos por setas vermelhas e verdes. Estas cores podem remeter a símbolos de inibição ou ao impulso de agir rapidamente. Algumas alternativas presentes em outras pesquisam envolvem estímulos em forma de círculo seguido de um X para indicar a inibição. Há também versões desta tarefa que envolvem estímulos sonoros como gatilho para o comportamento inibitório.

4. Os autores divulgam no artigo a lista dos jogos que consideram como FPS e delimitaram os sujeitos que entrariam no grupo de JVGs. Dentre estes, encontramos exemplos como Call of Duty, Unreal Tournament, Half-Life 2, BattleField e Grand Theft Auto IV. No entanto, este último jogo não pode ser considerado como FPS, visto que o jogador visualiza seu personagem em “terceira pessoa”, conforme a imagem abaixo. Além disso, a jogabilidade e a variedade de estímulos que o compõe se diferenciam muito dos outros jogos incluídos no estudo, assim como outros jogos de FPS.

5. Dentre as variáveis sociodemográficas, os autores as limitaram à idade e inteligência, porém poderiam ter comparado outras variáveis sociodemográficas, tal como sexo e renda.

6. Visto que o protocolo da pesquisa envolveu 3 tarefas - o que pode ser cansativo - os participantes puderam realizar pausas de até 5 minutos entre elas. No entanto, estas pausas opcionais podem ser problemáticas, gerando diferenças no nível de recuperação entre os participantes que podem refletir no desempenho cognitivo.

7. Os autores pontuam limitações sobre a impossibilidade de controlar as predisposições genéticas e fatores neurodesenvolvimentais que podem influenciar o modo como os indivíduos se beneficiam com a prático de videogames.

8. Mensurações de biomarcadores poderiam ser incluídas nesta pesquisa, a fim de verificar respostas do Sistema Nervoso Autônomo, que podem ser complementares aos dados deste estudo, abrindo margem para algumas inferências sobre o nível de excitação (arousal, em inglês) ou estresse, por exemplo.

9. Os participantes também poderiam reportar sua percepção de dificuldade da tarefa, assim como comunicarem se acharam as tarefas similares à alguma atividade prévia de suas experiências.

Materiais Complementares

Matéria: Jogos de tiro em primeira pessoa viram febre no Brasil e no mundo.

 

Caso você ainda não tenha compreendido como funcionam os jogos de FPS, ou para entender melhor o espaço que eles tomaram nos mercados dos games, confira esta matéria clicando aqui. 

Para conhecer outros materiais complementares, clique aqui!

Como citar este texto:

 

Nascimento, L. M. (2018). Como assim, videogames de tiro em primeira pessoa? (Website Alfabetização Científica em Psicologia). Recuperado de:

http://alfabetizacaopsico.wixsite.com/home/materia-x 

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Referência:

O artigo Action video gaming and cognitive control: playing first person shooter games is associated with improvement in working memory but not action inhibition de Colzato, van den Wildenberg, Zmigrod & Hommel (2013), pode ser lido na revista Psychological Research clicando aqui. 

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