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Fique ligado: nem todo "brain training" é milagroso 

Lucas Martins do Nascimento

25 de Outubro de 2018

Você já deve ter ouvido falar a respeito de treinamentos para o cérebro, para melhorar a eficiência mental ou as habilidades cognitivas, certo? Baterias de jogos são mundialmente comercializadas, com a promessa de promover benefícios “cerebrais”. Entretanto, devemos ser criteriosos antes de aderir a qualquer treinamento!

 

Uma pesquisa desenvolvida no Canadá, na Western University, realizou dois experimentos a fim de investigar se os efeitos de um treinamento em uma tarefa computadorizada são transferíveis para uma outra tarefa similar, mas não treinada, fenômeno conhecido como transferência proximal. 

EXPERIMENTO 1

Os pesquisadores contaram com a colaboração de 78 participantes, divididos em grupo experimental (GE) e grupo controle (GC). Este experimento tevês três etapas:
 

Etapa 1: avaliação inicial
 

Ambos os grupos foram submetidos a uma avaliação inicial em duas tarefas. A primeira tarefa foi utilizada como controle, spatial span (envolve memória de curto prazo com localização espacial), pois possui design similar à tarefa de treino (etapa 2) e evoca um conjunto de atividades neurais e domínios cognitivos próximos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1 (Stojanoski, Lyons, Pearce & Owen, 2018). Imagem da tarefa spatial span. Os participantes devem reproduzir uma sequência de caixas que aparecem aleatoriamente a cada 900 ms em uma matriz 4 × 4. A extensão da sequência aumenta ou diminui em uma unidade conforme acerto ou erro, respectivamente.

 

A segunda tarefa da avaliação inicial foi a digit span (envolve memória de curto prazo verbal), utilizada para verificar se o treinamento (etapa 2) teve potencial de gerar transferência proximal. A digit span foi escolhida por ser processualmente similar com a tarefa de treino (token search). 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2 (Stojanoski, Lyons, Pearce & Owen, 2018). Imagem da tarefa digit span. Em cada trial, esta tarefa demanda que os participantes se lembrem de uma sequência de números apresentados no centro da tela, um de cada vez e, em seguida, reproduzam esta sequência no teclado. Após um trial correto, a próxima sequência terá o acréscimo de um número, e trials errados o oposto. Esta tarefa foi encerrada após três erros.

 

Etapa 2: treinamento    


Nesta etapa, o GE realizou, no mínimo, dez horas de treinamento com a tarefa token search (envolve memória de curto prazo com localização espacial) em casa no decorrer de um mês. O GC não realizou nenhum treinamento. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3 (Stojanoski, Lyons, Pearce & Owen, 2018). Imagem da tarefa token search utilizada como treino cognitivo. A tarefa inicia com quatro quadrados posicionados aleatoriamente na tela. O participante deveria encontrar um token oculto clicando nos quadrados para revelar seu conteúdo. Depois que um token foi descoberto, um novo token ficou oculto atrás de outro quadrado e o participante deveria encontrá-lo novamente. Quando o segundo token foi descoberto, um terceiro ficou oculto e assim por diante, até que os quatro quadrados tenham sido abordados. Se o participante clicar em um quadrado vazio duas vezes ou clicar em um quadrado onde o token foi encontrado anteriormente, isso será um erro. O número de quadrados aumenta e diminui em uma unidade conforme acertos ou erros, respectivamente. O treino se encerra quando o participante comete três erros.

 

Etapa 3: reavaliação


Por fim, após 30 dias ambos os grupos foram avaliados novamente nas tarefas spatial span e digit span. Como resultado, o Teste T de amostras pareadas indicou que os participantes melhoraram em média 18% na tarefa de treino, token search
 

Por meio de análise de variância (ANOVA) de efeitos mistos, levando em consideração o grupo (GE VS GC), a tarefa (digit span VS spatial span) e o dia do teste (etapa 1 VS etapa 2), os autores sugeriram que não houve transferências para as tarefas de avaliação. Sendo assim, os resultados sugerem que os benefícios do treinamento se limitam à própria tarefa que foi treinada, mas não são extrapolados para outras tarefas similares.

EXPERIMENTO 2

O Experimento 2 teve objetivo de checar estes resultados com uma tarefa mais popular entre as pesquisas, amplamente reconhecida por ser capaz de promover transferências. Para isso, os pesquisadores seguiram o mesmo protocolo do Experimento 1, com as três etapas descritas anteriormente, sendo a única diferença na tarefa de treino, que foi a dual n-back (envolve memória de trabalho). É importante ressaltar que a dual n-back é conceitualmente similar à token search, além de compartilharem propriedades neurais e cognitivas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2. Ilustração da tarefa dual n-back utilizada no treino cognitivo. Os participantes deveriam monitorar uma sequência de quadrados apresentados focando em sua localização (similar ao spatial span), enquanto também eram apresentadas letras. Deveriam indicar se o estímulo: a) possuía a mesma localização e pressionar a seta para esquerda, b) possuía a mesma letra e pressionar a seta para direita, c) possuía a mesma localização e letra e pressionar ambas as setas, d) possuía localização e letra diferentes e não teclar nada. Os participantes completaram 10 blocos da tarefa, em que cada bloco foi de n+20 estímulos aleatórios. Com 90% de respostas corretas em um bloco, ocorria o aumento de um n no bloco seguinte, enquanto o desempenho inferior a 70% reduzia um n. Os participantes treinaram realizando 10 blocos por dia.

Como resultado, o Teste T de amostras pareadas indicou que o incremento do desempenho dos participantes na tarefa de treino, dual n-back, excedeu a casa dos 60%. Por meio de análise de variância (ANOVA) de efeitos mistos, levando em consideração os mesmos parâmetros do Experimento 1, os autores novamente observaram que não houve transferências para as tarefas de avaliação. Ao final da pesquisa, os autores discutiram alguns tópicos que poderiam justificar estes achados, que de modo geral, destoam da literatura:

1. Foram utilizadas tarefas de treinamento inadequadas? 


Os autores descartam esta possibilidade, visto que há diversos estudos que evidenciaram melhorias generalizáveis na memória de curto prazo por meio do treinamento com a tarefa dual n-back. Além disso, tendo em visto que a tarefa token search compartilha diversas propriedades com a dual n-back (resumidamente, ativam uma rede semelhante de regiões do cérebro e contam com processos cognitivos similares), se o treinamento com dual n-back possibilitasse transferências, o treino com token search também deveria ter o mesmo efeito.

 

2. As tarefas de avaliação (digit span e spatial span) eram sensíveis aos efeitos do treinamento?


A spatial span e a digit span são comumente usadas como tarefas de teste/avaliação de memória de curto prazo e em estudos que verificam o grau de transferência após o treinamento. Sendo assim, é improvável que a escolha destas tarefas seja inadequada.

 

3. O protocolo de treino foi breve demais? 


Os autores descartam a possibilidade que os participantes não receberam treino suficiente para progredir em tarefas não treinadas, dado que o tempo foi consistente com a maioria dos estudos de “treinamento cerebral” e mais extenso que diversas pesquisas que constataram transferências. 

 

Conclusão 


Como conclusão destes experimentos, o treinamento com tarefas de memória de curto prazo não produziu melhorias generalizáveis em outras tarefas de memória de curto prazo não treinadas em participantes saudáveis. 

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Para refletir...

Implicações

Uma das principais considerações extraídas deste texto trata da importância de nos atentarmos para validade dos “treinos mentais” disponíveis no mercado. Se o seu interesse vai além do entretenimento e tange a busca por benefícios cognitivos, é interessante que você estude fontes confiáveis e se aproprie sobre este assunto.  Há pesquisas (disponível no material complementar a seguir) que demonstraram benefícios cognitivos após a intervenção com um videogame comercial (Portal 2), mas que também contrariaram uma famosa plataforma comercial de brain training.

Limitações da pesquisa

Algumas limitações devem ser consideradas:


1. A idade dos participantes foi bem distribuída, entre 20 e 62 anos, com (média de 32.89 anos, desvio padrão de 8.41). Talvez com o público infantil os treinamentos realizados gerassem outros efeitos.

2. O tempo de treino (mínimo de dez horas) está em consonância com estudos prévios, porém, no presente estudo se passou um mês entre a avaliação inicial e final. Os autores não compararam esta lacuna de tempo (de um mês) com as pesquisas prévias, que poderiam ter realizado a avaliação inicial (etapa 1), o treinamento (etapa 2) e a reavaliação (etapa 3) em uma um período de tempo menos espaçado e, consequentemente, mais “imediato e/ou intenso”. 

3. Esta pesquisa poderia ter envolvido um terceiro grupo, o qual treinaria com um videogame (ou uma tarefa gameficada) que evoque memória de curto prazo, para fins comparativos. 

Materiais Complementares

Recomendamos a leitura do artigo The power of play: The effects of Portal 2 and Lumosity on cognitive and noncognitive skills, que você pode acessar clicando aqui.

Este artigo apresenta os efeitos de uma intervenção de 8 horas com o videogame Portal 2 e uma plataforma de “treino cerebral”, sobre diversos domínios cognitivos. Os resultados são surpreendentes, visto que o brain training, composto por uma bateria de tarefas mundialmente comercializada, não proporcionou incrementos cognitivos nesta pesquisa, enquanto o grupo que jogou Portal 2 apresentou benefícios para resolução de problemas, habilidades espaciais e persistência. Estes resultados não anulam a significância desta bateria, visto a necessidade de mais pesquisas sobre o tema, assim como o fato que alguns benefícios já foram observados com intervenções com este mesmo brain training no domínio da aprendizagem, por exemplo (você pode verificar clicando aqui).

Para conhecer outros materiais complementares, clique aqui!

Como citar este texto:

Nascimento, L. M. (2018). Fique ligado: nem todo "brain training" é milagroso (Website Alfabetização Científica em Psicologia). Recuperado de: 

http://alfabetizacaopsico.wixsite.com/home/materia-5-3

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Referência:

O artigo Targeted training: Converging evidence against the transferable benefits of online brain training on cognitive function, de Stojanoski, Lyons, Pearce & Owen, (2018), pode ser lido na revista Neuropsychologia clicando aqui. 
 

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