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Resultados na contramão também são importantes.

Lucas Martins do Nascimento

22 de Junho de 2018

Diversos estudos já demonstraram benefícios cognitivos por meio da prática com videogames (VG). Estes dados são encontrados tanto em comparativos entre grupos de jogadores e não jogadores (estudos transversais), assim como em pesquisas que verificaram o efeito do treinamentos controlados com VG (estudos longitudinais). No entanto, é de suma importância também incluir em nossos estudos as pesquisas que vão na contramão dos principais achados científicos, ou que contrariam nossas próprias teses.

Buscando responder lacunas sobre os efeitos dos videogames para a cognição, o professor Walter R. Boot e colaboradores, da Universidade de Illinois, realizaram uma pesquisa em 2008 com objetivo de verificar se os efeitos do treinamento com VG vão além do campo visual e atencional, abrangendo também a memória, raciocínio e controle executivo.

 

Esta pesquisa contou com a colaboração de 82 voluntários universitários, com idades entre 18 e 24 anos, convidados por meio de folhetos e divulgação online.  Para participar, o indivíduo deveria se encaixar no perfil de não jogador de VG (NJVG), ou seja, poderia ter no máximo 2 horas semanais de contato com VG nos últimos 2 anos. Os participantes foram divididos aleatoriamente em três grupos para realizar treinamentos com diferentes jogos, além de um quarto grupo controle:

1. Jogar Medal of Honor, gênero ação, modalidade Tiro em Primeira Pessoa (n = 20)
2. Jogar Rise of Nations, gênero estratégia (n = 23)
3. Jogar Tetris, gênero puzzle (n = 20)
4. Grupo controle, sem prática com nenhum VG (n = 19)

O treinamento com VG consistiu em jogar 15 vezes em laboratório, com 1 hora e 30 minutos de duração, totalizando uma prática de 21 horas e 30 minutos. O protocolo durou entre 4 e 5 semanas. É importante ressaltar que todos (incluindo o grupo controle) foram avaliados três vezes: antes de iniciar a prática com os jogos, no meio da pesquisa e no final da última prática com os jogos, na seguinte bateria de testes:

1. Tarefas visuais e atencionais.

a. Functional field of view: avalia a amplitude da atenção visual.

b. Attentional blink: avalia a flexibilidade de atenção ao longo tempo.

c. Enumeration: avalia o número de estímulos que podem ser captados visualmente em um curto período de tempo (50 milissegundos).

d. Multiple object tracking: avalia a velocidade de rastreio simultâneo de três itens em movimento, embaralhados entre distratores.

e. Visual short-term memory: avalia a memória de curto prazo.

2. Tarefas de processamento e memória espacial.

a. Spatial 2-back: avalia memória de curto prazo em um teste que envolve a localização espacial dos estímulos.

b. Corsi block-tapping task: avalia memória de curto prazo em uma sequência de estímulos que deve ser memorizada e repetida.

c. Mental rotation: avalia a habilidade de rotacionar objetos mentalmente.

 

3. Tarefas de controle executivo.

a. Task switching: avalia a habilidade de alternar entre duas tarefas.

b. Tower of London: avalia habilidades de planejamento.

c. Working memory operation span: avalia memória de trabalho.

d. Raven matrices: avalia a inteligência fluida por meio do reconhecimento de padrões.

Diante da extensa quantidade de dados, os autores apresentaram apenas os efeitos e interações principais. A tabela a seguir é um compilado destes resultados. Visto que muitos resultados se repetem, os conteúdos grifados em amarelo se destacam da maioria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tendo em vista os resultados da Tabela 1, os autores atestaram que, com exceção do Tetris, a prática com VG por mais de 21 horas não foi suficiente para trazer benefícios detectáveis aos NJGP. Estes resultados foram na contramão de diversas pesquisas prévias, as quais constataram benefícios por meio do treinamento com VG em alguns dos testes desta pesquisa. Segundo os autores, uma das possibilidades para justificar estas diferenças frente ao mainstream científico são algumas variações no método deste estudo, como por exemplo, o tempo de apresentação do estímulo “máscara” na tarefa Functional field of view¸ o qual foi mais breve (em 100 milissegundos) e colorida na presente pesquisa.

Outro fato interessante para a interpretação dos resultados foi a duração das baterias de avaliações, a qual teve 12 tarefas. Os autores acreditam que estas extensas avaliações tenham “treinado” os participantes, o que pode justificar o melhor tempo de resposta e acurácia na maioria das tarefas no decorrer das 3 baterias de avaliações.

Para refletir...

Implicações

Os resultados levantam dúvidas sobre o poder dos VG em transferir suas habilidades, não apenas para tarefas em laboratório, mas também para situações dinâmicas e complexas da vida real. Neste sentido, os autores questionam a validade prática de intervenções laboratoriais passadas, já atestadas como eficientes, visto que poucos estudos aplicam testes ecológicos, próximos à realidade de nossas rotinas. Portanto, é importante que os estudos incluam avaliações mais ecológicas a fim de as pesquisas verificarem com maior validade o real impacto do treino de VG.

Limitações da pesquisa

Algumas limitações devem ser consideradas:


1. A amostra foi composta quase totalmente por mulheres, portanto, não representou adequadamente a população daquela região.

2. ​Conforme exposto anteriormente, extensas baterias de avaliação podem ter treinado os participantes e dificultado a compreensão sobre os efeitos do treinamento com VG.

 

3. Ausência de controle sobre as predisposições genéticas individuais e atravessadores neurodesenvolvimentais.

 

4. Como indicação para futuras pesquisas, os pesquisadores poderiam ter vinculado o registro de respostas do Sistema Nervoso Autônomo (tal como frequência cardíaca ou resposta galvânica da pele) a fim de diferenciar o efeito de diferentes jogos sobre estes dados psicofisiológicos. Em um cenário hipotético, um jogo de Tiro em Primeira Pessoa, tal como Medal of Honor, por exemplo, poderia manter o jogador engajado com alta frequência cardíaca até o final das 21 horas de treinamento. Do mesmo modo, esta excitação fisiológica poderia refletir níveis prejudiciais de estresse.

 

5. A avaliação sobre a percepção de dificuldade de cada tarefa também poderia ter sido realizada.

 

6. Os participantes também poderiam reportar se alguma tarefa da bateria de avaliações foi similar à alguma atividade prévia em sua vida.

 

7. Questiona-se também se o treino de 21 horas foi o suficiente para refletir benefícios cognitivos.

 

8. Por fim, conforme comentado anteriormente, os participantes ficaram limitados a testes em laboratório.

Materiais Complementares

No introdução do artigo apresentado, comenta-se a respeito de um estudo realizado com cadetes de uma escola de aviação em Israel. Nesta pesquisa, o grupo que treinou com o jogo Space Fortress teve desempenho significativamente superior ao grupo controle (sem prática com este jogo) em uma performance real de voo. Os pesquisadores acreditam que este benefício seja pelo treinamento do controle atencional em múltiplas tarefas e demandas sobrepostas por meio do VG. Em todo caso, é interessante saber que este estudo foi tão bem conceituado ao ponto do Space Fortress ser inserido em treinamentos da Força Aérea de Israel.

Para conferir esta pesquisa, clique aqui. 

Para conhecer outros materiais complementares, clique aqui!

Como citar este texto:

 

Nascimento, L. M. (2018). Resultados na contramão também são importantes. (Website Alfabetização Científica em Psicologia). Recuperado de: 

http://alfabetizacaopsico.wixsite.com/home/materia-4-4

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Referência:

O artigo The effects of video game playing on attention, memory, and executive control de Boot, Kramer, Simons, Fabiani & Gratton (2008), pode ser lido na revista Acta psychologica clicando aqui. 

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