
O que você quer estar pensando ou sentindo quando estiver morrendo?
Bruna Letícia da Silva
2 de Novembro de 2016
Morte. Palavra forte, capaz de gerar diversos sentimentos no único ser vivo a ter consciência de sua finitude, por ser ela uma constante na sua experiência de vida antes de se tornar o fim para ele próprio. Em várias culturas e religiões e ao longo da história do ser humano, há registros de pessoas que estiveram à beira da morte ou foram até dadas como mortas por alguns minutos e que, ao recobrar a consciência, são capazes de descrever com clareza e precisão tudo o que se passou ao seu redor e o que foram capazes de sentir. Isso deve significar alguma coisa, não é mesmo?
Pode ser que não signifique, mas é capaz de re-significar. Com base na visão biopsicossocial e espiritual do ser humano, Ana Catarina Araújo Elias e colaboradores, mobilizados pelo sofrimento da experiência de possível morte de pacientes hospitalizados, estudaram qualitativamente e quantitativamente a eficácia de uma intervenção psicoterapêutica para profissionais da saúde trabalharem com estes pacientes. A intervenção, a qual foi desenvolvida através da integração das técnicas de Relaxamento Mental e Visualização de Imagens Mentais (RIME), juntamente com o conceito de Espiritualidade, tem por objetivo re-significar a Dor Simbólica da Morte (Dor Psíquica e Dor Espiritual) de pacientes terminais, com base nos elementos descritos por outros pacientes que passaram por uma experiência de quase morte (EQM).
Ao buscar uma prática capaz de minimizar o sofrimento psicológico de pacientes com câncer em fase terminal, Elias observou que os indivíduos que haviam passado pela EQM tinham minimizado o medo da morte. Assim, teve o insight de induzir a visualização dos elementos descritos na EQM em pacientes que se encontravam em uma fase sem possibilidade de cura, a fim de proporcionar melhor qualidade psicológica no processo de morrer, bem como uma morte mais serena. A intervenção busca ser uma forma de ajudar os pacientes terminais a aliviar o medo da morte e do pós-morte, reduzindo o sentimento de culpa, bem como ideias e concepções negativas em relação à espiritualidade e ao sentido da vida, dando significado para as vivências. Para tanto, a intervenção envolve uma escuta terapêutica e o contato individual, estimulando sentimentos e pensamentos que elevem a autoestima do paciente, deixando-o, acima de tudo, consciente do que está por vir.
No estudo publicado, a aplicação do RIME desenvolveu a identificação da dor espiritual por meio de entrevista semiestruturada, orientação das técnicas de relaxamento mental e de visualização de imagens mentais integradas aos elementos que compõem a natureza da espiritualidade, bem como sessões de orientação familiar realizadas de forma complementar à aplicação dessa intervenção terapêutica. Nesse contexto, o estudo contou com 1 enfermeira, 1 médica, 3 psicólogos e 1 terapeuta alternativa que participaram do curso de capacitação, ministrado por Elias, e do programa de treinamento. Após essa primeira fase, os profissionais aplicaram a intervenção no total de 11 pacientes com câncer, na faixa etária entre 27 e 76 anos, os quais responderam à Escala Visual Analógica (EVA) de Bem-Estar antes e depois do RIME. O modelo de expressões faciais coloridas (EVA) foi escolhido, visto que um modelo numérico pode não ser capaz de medir questões subjetivas relacionadas à dor. Desse modo, faces com diferentes cores relacionadas a diferentes e expressões facilitam a melhor identificação da resposta para o doente expressar intensidade de medo, ideias, culpas, sentimentos e emoções, proporcionando assim uma melhor avaliação da intervenção.
Por meio das vivências entre profissionais e pacientes ao longo da intervenção, observou-se que sentimentos como medo da morte por negação do quadro clínico, assim como pela percepção da doença, medo do pós-morte, vazio existencial e abandono afetivo foram substituídos ao longo do processo de re-significação por serenidade, paz de espírito, liberdade, amor e aceitação . Os escores de bem-estar relatados pelos doentes utilizando a EVA apresentaram uma porcentagem de 25% no início das sessões e um aumento significativo de 75% no final de cada sessão, mostrando a ocorrência da re-significação da dor.
O RIME beneficiou não só os pacientes, mas também os profissionais que a aplicaram, os quais relataram uma redução de emoções de impotência e frustração ante as resistências do doente, assim como o desenvolvimento de um novo significado sobre a morte e uma maior valorização da vida. Observou-se também que ao final das sessões de RIME, os pacientes relataram maior nível de bem-estar, minimizando o medo da morte e o sentimento de culpa. Segundo os autores, o vínculo entre os profissionais e os pacientes potencializou a construção do processo de humanização no modelo atual de saúde, favorecendo a escuta terapêutica. Além disso, diante dos resultados positivos, o programa de treinamento proposto mostrou-se eficaz em preparar profissionais de saúde para o uso da intervenção RIME, capacitando-os a cuidar e prestar maior assistência a pacientes terminais.
É importante ressaltar que a pesquisa não buscou comprovar a existência de vida após a morte ou de impor uma religião ao paciente ostomizado, mas sim humanizar o modelo assistencial prestado nos cuidados paliativos, proporcionando uma maior organização psicológica em pacientes que, devido ao grave quadro clínico, se encontram em estado de extrema fragilidade emocional. Vale ressaltar que a Ana Catarina Araújo Elias recebeu o prêmio CRISTÁLIA SIMBIDOR pelo trabalho desenvolvido, durante o 7º Simpósio Brasileiro de Encontro Internacional Sobre Dor em São Paulo, no ano de 2005.
Para além do hospital, refletir sobre a nossa condição de “mortais” pode estimular, tanto de forma consciente quanto inconsciente, a buscar uma vida melhor. Ao ver como somos limitados e frágeis, é possível achar formas alternativas de superar essa condição, capaz de modificar, por exemplo, um mau hábito praticado por anos, fazendo com o que o sujeito seja capaz de cuidar melhor da saúde, valorizar sua rede de apoio e viver com mais calma.
Para refletir...
Implicações
1. A intervenção pode ter potencial de aplicação em outras situações, como no pré e pós-cirúrgico, no tratamento da oncologia desde a fase do diagnóstico, no tratamento de doenças psicossomáticas, com pacientes que tentaram suicídio, etc.
2. A intervenção é vista como uma modalidade complementar e alternativa que visa ajudar a superar a crença de que a cura do câncer só advém de um tratamento biológico, sendo os aspectos psicológicos e espirituais muitas vezes desconsiderados ao longo do tratamento.
3. Entender as representações da dor espiritual é muito importante, pois muitas vezes os profissionais relacionam as atitudes dos pacientes que expressam essa dor à esfera pessoal, gerando estresse profissional desnecessário, além de um atendimento insatisfatório às necessidades do doente.
Limitações da pesquisa
Algumas limitações devem ser consideradas:
1. Há necessidade de novas pesquisas, visto que a amostra foi pequena para considerarmos os resultados conclusivos.
2. O desenho da pesquisa não permitiu a utilização de grupo controle para comparar os resultados do RIME com os resultados de um grupo que não tenha recebido a intervenção.
3. A aplicação da intervenção RIME só foi avaliada em pacientes e feita por profissionais que acreditavam na vida espiritual. Portanto, não há registro do uso e da efetividade do RIME para profissionais ou pacientes ateus.
4. Não é uma intervenção fácil de ser aplicada, pois, unir o terapeuta e o paciente em um único sentimento requer disponibilidade interna e entrega por parte de ambos.
5. Não houve controle do intervalo entre as sessões. Pode-se questionar se, o nível de bem-estar do paciente piora ou mantém-se estável em um intervalo longo.