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Luma Thomaz Marcatti

29 de Setembro de 2016

Quantas vezes você acreditou fielmente na sua memória, mas depois descobriu que as coisas não eram exatamente do jeito como pensava? Episódios como este são extremamente comuns e têm relação com um fenômeno denominado “falsas memórias”. Estas falsas memórias são suscetíveis a eventos cotidianos, tornando desafiador o processo de lembrar de fatos com absoluta certeza e nitidez. Agora imagine o transtorno que esse tipo de memória pode causar em situações onde a fidedignidade das lembranças é um fator decisivo, tal como no relato de um crime. Dessa forma, baseados no fato de as pessoas nem sempre serem capazes de relatar eventos de forma precisa, diversos estudos científicos têm buscado compreender o que são as falsas memórias e de que forma elas podem ser influenciadas.


Um estudo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) teve como objetivo testar a indução de falsas memórias em adultos e comparar a ocorrência destas com a de memórias verdadeiras. Falsas memórias são mais frequentes do que percebemos e podem ser definidas como lembranças de eventos e detalhes que, na realidade, não aconteceram.


A pesquisa de Lilian Stein e Giovanni Pergher, publicada em 2001 pela revista Psicologia: Reflexão e Crítica, foi o primeiro estudo sobre falsas memórias em adultos realizado no Brasil. A investigação foi conduzida a partir de dois experimentos, os quais utilizaram um instrumento que compreendia um sistema de listas de palavras associadas (conhecido pela sigla DRM). O DRM permitiu testar a memória de 27 alunos de uma universidade, com uma idade média aproximada de 22 anos. 


A primeira etapa do Experimento 1 consistiu na apresentação, em forma de gravação de áudio, de 10 listas com 15 palavras cada, sendo que tais palavras eram semanticamente relacionadas entre si (ex.: cama, descanso, cochilo, sonho, sono). Em seguida, foi realizado um teste de memória de reconhecimento (teste imediato) e, uma semana depois, o teste foi aplicado novamente (teste posterior), conforme apresentado na Figura 1.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em ambos os testes de reconhecimento – imediato e posterior –, uma mesma lista, com 70 itens, foi lida em voz alta. Esta lista era composta por três tipos de palavras:

⦁   itens-alvo: palavras que tinham sido apresentadas na primeira lista
⦁   distratores críticos: palavras que não estavam na primeira lista, mas apresentavam o mesmo tema, como “dormir” (seguindo o exemplo anterior) 
⦁  distratores não relacionados: palavras que não apareceram na primeira lista e nem possuíam relação alguma com os itens dessa.

Os participantes deveriam assinalar “sim” ou “não” para cada uma das palavras, levando em consideração o fato de terem ouvido, ou não, a mesma palavra anteriormente, na apresentação da primeira lista.


Para a análise das respostas dos testes, foram consideradas duas variáveis independentes, isto é, as respostas foram analisadas a partir de dois fatores: o tipo de resposta e o momento da testagem. O tipo de resposta no teste de memória poderia ser de três maneiras: resposta verdadeira (quando o participante reconhecia – “sim” – um item que estava presente também na lista inicial), resposta falsa (quando o participante reconhecia um distrator crítico) e resposta de viés (quando o participante reconhecia um distrator não relacionado). Já a segunda variável, o momento da testagem, comparava o desempenho entre o teste de memória imediato e o posterior. 


A análise foi feita através de testes estatísticos (ANOVA), a fim de verificar a interação entre as variáveis citadas anteriormente. Os resultados demonstraram que os índices de respostas indicativas de falsas memórias foram estatisticamente semelhantes aos de respostas indicativas de memórias verdadeiras, tanto no teste imediato, como no posterior.


Dessa maneira, percebe-se que o reconhecimento de falsas memórias ocorre praticamente na mesma proporção que o reconhecimento de memórias verdadeiras. Os autores discutem que isso pode ser explicado pela Teoria do Traço Difuso, a qual considera a existência de duas formas de memória: a memória literal e a de essência. A memória literal representa a codificação das informações de forma precisa, na qual os detalhes são registrados e armazenados. Já a memória de essência é mais ampla e robusta, armazenando as informações não específicas, ou seja, o contexto geral e o que representa o significado da experiência como um todo. A partir disso, é possível identificar a relação que as memórias verdadeiras e falsas têm com cada um dos tipos de memória citados acima. Enquanto as memórias falsas são causadas apenas pela retomada de uma memória de essência, a recordação das memórias verdadeiras está envolvida tanto com a ideia de memória de essência, como com a de memória literal. A Teoria do Traço Difuso também propõe que a duração das memórias de essência seja maior do que a das memórias literais. Essa alegação explica o fato de os participantes terem reconhecido os distratores críticos na mesma proporção que os itens-alvo, já que, com o enfraquecimento da memória literal por conta do tempo entre-testes de uma semana, a recordação de ambos os tipos de palavras ficou sustentada apenas pela memória de essência.


Os autores do estudo em questão também realizaram um segundo experimento para testar a influência que um teste de memória pode exercer sobre a própria memória do participante. Esse experimento foi de grande importância para compreender a relação entre a realização do teste imediato e a eficiência na realização do teste posterior, uma vez que foi possível controlar a influência da repetição no processo de memorização.


O Experimento 2 foi conduzido com 33 estudantes, com uma média de 22 anos de idade. Os testes foram semelhantes aos do primeiro experimento, mas, desta vez, com o objetivo de identificar o efeito da repetição na proteção das memórias verdadeiras contra o esquecimento, bem como na criação de falsas memórias.


A comparação de itens do teste posterior que haviam sido apresentados no teste imediato, com itens do teste posterior que não haviam sido apresentados no teste imediato, mostrou a influência que a repetição tem na memória, de modo que o índice de reconhecimento de memórias verdadeiras e falsas foi muito superior nos itens que sofreram repetição.


O fato de ambas as memórias terem sofrido influência da mesma forma e na mesma proporção, possibilitou a constatação da existência de um duplo efeito. Em outras palavras, a repetição auxiliou na proteção das memórias verdadeiras contra o esquecimento, mas também influenciou a criação de falsas memórias, já que os dois tipos de memória foram produzidos na mesma medida para os itens que foram repetidos. Estes efeitos também podem ser explicados pela Teoria do Traço Difuso, pois esta sugere que as memórias de essência permanecem mais duradouras que as literais. Desse modo, provavelmente, ambos os tipos de resposta - verdadeiras e falsas -  foram reconhecidos por conta da mesma memória de essência que persistiu.


Os autores concluíram, portanto, que os testes confirmaram a possibilidade de induzir falsas memórias em adultos e que os índices de memórias verdadeiras e falsas mostraram-se semelhantes, inclusive no momento em que foi considerada e controlada a influência do processo de repetição. Desse modo, deve-se ter cautela com a suposta validade das lembranças, e deve-se questionar a real contribuição que a repetição de informações pode exercer sobre a precisão das memórias.

Para refletir...

Implicações

Como visto nos resultados da pesquisa, o efeito de preservação das memórias verdadeiras não foi suficientemente superior ao efeito de criação de falsas memórias. Isso nos leva a refletir sobre certas práticas diárias, como, por exemplo, em situações na área forense, ou, até mesmo, na atuação clínica dos psicólogos. Como saber em que medida os depoimentos contam a verdade? E como saber até onde a falsa informação é uma mentira propositalmente elaborada ou até onde vai a crença de que aquela lembrança foi real?


Além das áreas citadas acima, acredita-se que a esfera da educação também poderia se utilizar dos resultados obtidos no estudo em questão. Sabendo da maneira como a estruturação das memórias é feita, os professores poderiam utilizar-se de recursos pedagógicos que envolvam o trabalho com memórias de essência, facilitando o aprendizado e fazendo com que os alunos tenham um melhor armazenamento do conteúdo, evitando a simples “decoreba” dos mesmos.

Limitações da pesquisa

A quantidade de análises proporcionou um estudo bem completo, porém, ainda assim, foram identificados alguns fatores que podem interferir nos resultados:


1. O estudo não levou em consideração outros tipos de memória (como a visual, por exemplo), de forma que os testes ficaram restritos à memória auditiva.


2. De acordo com o que foi apresentado, a pesquisa não verificou a possível existência de sujeitos com habilidades extraordinárias de memória, a fim de entender como a relação entre memórias verdadeiras e falsas se manifesta nesta população.

3. Aparentemente, não foi levado em conta o humor, ou a saúde mental, dos participantes. Há a possibilidade de os testes terem sido feitos com pessoas que, talvez, não estivessem em seu melhor estado emocional e, consequentemente, com seu melhor nível de atenção no dia, o que pode ter interferido no desempenho.
 

4. Os experimentos foram realizados com duas turmas de estudantes. A primeira turma era composta por 26 mulheres e 1 homem, e a segunda por 32 mulheres e 1 homem. Dessa forma, é possível que a quantidade de participantes de cada sexo, por ser em proporções consideravelmente distintas, não tenha possibilitado uma amostra suficientemente representativa para o estudo.
 

5. Foram feitos testes imediatos e posteriores, havendo o intervalo de uma semana entre duas das etapas da pesquisa. Apesar disso, o artigo não informa se houveram desistências/faltas ou alteração no número de participantes ao longo do estudo. Tampouco considera a possível ocorrência de algum evento estressor neste período, o que causaria interferência nos resultados dos testes posteriores.

Materiais Complementares

Falando em memória, como anda a sua capacidade de guardar nomes, datas, fatos e conceitos? Em geral, cada pessoa cria um mecanismo próprio para memorizar informações necessárias, mas, caso você precise de um auxílio, uma reportagem uniu oito técnicas de memorização que podem ajudar nesse processo. Sinta-se livre para se apropriar de uma das maneiras sugeridas a seguir.


1. Para gravar itens, tenha na imaginação um lugar – um palácio, ou sua casa, por exemplo. ao fazer um percurso imaginário no lugar escolhido, com cada canto do lugar, cada móvel, cada quarto e cada objeto presente nestes locais você deve associar uma das informações que quer guardar. crie maneiras de relacionar cada objeto situado nos locais percorridos com cada informação a ser memorizada e, quando tiver que lembrar, basta refazer o percurso novamente, passando por todos os cômodos e seus objetos visualizados anteriormente, recuprando a memória associada a cada um deles.


2. Crie acrósticos com as primeiras letras das palavras a serem memorizadas. Por exemplo, para gravar a ordem dos planetas, a partir do sol, pode utilizar a frase “Minha Vó Tem Muitas Joias, Só Usa No Pescoço” – referindo-se a Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão.


Se tiver interesse em ver as oito técnicas completas, clique aqui.

Para conhecer outros materiais complementares, clique aqui!

Como citar este texto:

 

Marcatti, L. T. (2016). Você lembra do que não aconteceu? (Website Alfabetização Científica em Psicologia). Recuperado de: 

http://alfabetizacaopsico.wixsite.com/home/materia-2-3

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Referência:

O artigo Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas, de Stein & Pergher (2001), pode ser lido na revista Psicologia: Reflexão e Crítica clicando aqui.

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